Tradição e Contemporaneidade na
Música Sacra
Os batistas foram os primeiros a serem entrevistados, ao mesmo
tempo em que os seus cultos eram observados. Foram oito entrevistas ao longo de
um mês (out. de 96). Os/as luteranos/as foram entrevistados/as no mês de
dezembro de 96, sendo 6 entrevistas individuais e 6 entrevistas em grupo.
As entrevistas foram por pautas, cujo roteiro fundamentou-se nos
assuntos que se desejava que fossem enfocados: 1- a tradição e
contemporaneidade dos cantos dos cultos dessas comunidades,
2- a coerência
entre canto e liturgia (correspondência das diversas partes da
liturgia-prédica, orações, participações espontâneas ou fixas e a música), item
ainda subdividido em: a relação dos cantos com a liturgia como um todo, relação
dos cantos com o sermão, com o tema do dia ou do calendário eclesiástico,
relação das letras dos cantos com as principais doutrinas confessionais e com
temas da sociedade atual, as participações especiais de música não
congregacional, os instrumentos acompanhadores do canto e outros elementos,
como arquitetônicos e estéticos, que ajudam a transmitir um clima de tradição
e/ou contemporaneidade nos cultos;
3- A análise da hinodia dos hinários
oficiais e de cancioneiros que são usados rotineiramente, verificando o tipo
majoritário do estilo musical (tradicional e/ou contemporâneo) empregado nos
cultos; extensão desse levantamento, buscando explicações junto às pessoas que
compuseram as comissões do Hinário para o Culto Cristão (HCC) e do Hinário do
Povo de Deus (HPD): critérios de seleção e passos adotados na confecção dos
mesmos, organização interna desses hinários e suas estruturas de conteúdos.
As perguntas foram formuladas com esse alvos preestabelecidos.
Foram 14 perguntas versando sobre questões pertinentes à pesquisa e que podem
ser agrupadas em três principais subgrupos: a) como essas pessoas vêem a
questão da tradição e da contemporaneidade nos cantos dos cultos de sua igreja;
b) que critérios as pessoas usam/usariam para a inclusão desses cantos no culto
(aqui verifica-se o tipo de coerência que essas pessoas buscariam entre
liturgia e música para o culto cristão); c) como essas pessoas percebem os
hinários de sua denominação.
São listadas a seguir essas perguntas:
1. O que você entende por música sacra cristã tradicional?
2. O que você entende por música sacra cristã contemporânea?
3. Dos dois estilos de música mencionados, qual o que você mais
aprecia e por quê?
4. Na sua igreja, qual dos dois estilos é o mais usado?
5. Você considera que a música do culto da sua igreja está bem
ajustada ao lugar em que ela é colocada dentro da liturgia?
6. Quais as pessoas que devem/deveriam escolher os cantos dos
cultos?
7. Você já participou dessa escolha alguma vez? Que critérios
usou/usaria?
8. Como você vê a inclusão de música especial no culto?
9.
Que tipo de coerência existe entre o estilo de música usado no
culto e o tipo de culto que você encontra na sua igreja?
10. Que tipo de relação você faz entre música tradicional/
contemporânea e faixa etária?
11.
Que critérios de escolha você usa/usaria para os cantos do
culto?
12.
Que acha do hinário da sua denominação? Ele atende bem às
necessidades do culto da sua igreja? Há alguma lacuna ? Explique.
13.
Que acha dos hinos do hinário? Cite um dos que mais gosta e
outro que você menos gosta e explique a razão.
14.
Se você fosse fazer um hinário, que hinos você colocaria lá e
que critérios usaria para essa seleção?
O procedimento metodológico adotado nessa etapa constou do
levantamento das respostas, através da codificação das entrevistas efetuadas.
Essas respostas estão registradas em gravações e em anotações individuais da
pesquisadora . Como complementação, foram assistidos dez cultos. Foi também
feita uma análise dos hinários adotados como oficiais das duas igrejas: o HCC,
dos batistas da CBB e o HPD, dos luteranos da IECLB. Procurou-se avaliar a
contribuição desses hinários para o culto de cada igreja, observando-se o tipo
majoritário do estilo musical ali presente (tradicional ou contemporâneo).
Além
dessa análise, pesquisaram-se os critérios adotados pelas comissões que os
elaboraram.
As respostas à pesquisa para o conceito de “tradição” revelaram
que o termo traz a idéia de elo com o passado, consideração encontrada nos
dicionários , mas acrescida da informação de que os hinos e cantos tradicionais encontram-se nos hinários e que seus textos são mais elaborados. Até aqui
destacam-se três elementos importantes para a futura leitura: o problema das
gerações ou do “choque” entre gerações; o valor dos hinários
para a perpetuação de uma
tradição (entendida dentro de
sua confessionalidade) e a riqueza
dos textospertencentes a essa categoria de canto. Além dessas
considerações, as pessoas contribuíram com exemplos de hinos que consideram
tradicionais: o coral alemão do século XVI foi destacado como padrão. Como
adendo, o problema das traduções foi colocado como procedimento perigoso, que
pode tirar a beleza das versões originais.
Na presente pesquisa, foi relativamente fácil avaliar as
críticas pertinentes a cada geração: uma senhora mais idosa disse não gostar da
música contemporânea por ser “barulhenta”; outra da mesma faixa etária afirmou
que a música contemporânea não prepara o “clima” do culto; uma jovem declarou
não gostar de usar o hinário porque ele “tole ” a expressão gestual; um líder
disse que a música tradicional “não fala tanto às pessoas hoje”.
Quanto à questão do texto dos hinos, precisa-se avaliar o quanto
hinos tradicionais funcionam como veículos de uma mensagem cristã permanente em
contraposição à efemeridade da maioria da música contemporânea. É preciso
consultar com um maior aprofundamento quais seriam as características que
perenizam um canto. Desconfia-se aqui que o critério denominado por L.
WEINGÄRTNER como “cantabilidade” seja um dos que caracterizaria a durabilidade
de um canto, opinião abalizada por J. WILSON , quando faz uma análise dos elementos
que podem oferecer essa “cantabilidade” e o que denominou de “memorabilidade”.
E. ROUTLEY contribui para a concepção dessa perenização ao
destacar que o hino deve ser acessível aos não musicais . Ele também considera
que os conteúdos de maior apelo popular podem universalizar e perenizar o canto
se contiverem aquilo que o povo mais anseia ou se lidarem com as questões que
mais lhe afetam: o amor, o trabalho e a morte. “Hymns are a kind of song: but they differ from
professional song, or an art-song, in being songs for unmusical people to sing
together. The music carries the poetry into the mind and experience [...].
Hymns, being communal song, have a good deal in common with folk song [...].
Secular folk song goes with words concerned with things that mean most to a
community: basically these are love, work and death “.
Ao estudar os cantos das diversas fases da história,
principalmente aqueles que ficaram como legado universal para todos os
cristãos, sem limites confessionais, convinha verificar que quesitos, incluindo
os acima descritos, determinam essa atemporalidade e esse universalismo. Por
outro lado, existem cantos que não vão se classificar dentro desse universo
maior, por causa do conteúdo catequético de seus textos. Segundo sugestão dada
nas entrevistas, cada comunidade deve estar atenta para que cantos assim não
venham fragilizar suas posições doutrinárias e, por esse motivo, se faz
necessária a escolha criteriosa dos cantos para o culto.
A emoção, quase sempre aliada às
experiências de infância, foi um elemento bastante citado. Ela estaria mais
presente nesses hinos do passado. Esse aspecto, porém, pode comprometer uma
escolha consciente, porque a emoção tende a excluir a razão. Essa colocação
ficou evidenciada numa certa colocação expressa nas entrevistas de que ,
qualquer dos dois tipos de música, seja tradicional, seja contemporânea, será
aceita se preencher o gosto pessoal (aqui entendido de quem estava enunciando o
problema). Outro critério apontado como capaz de harmonizar as duas tendências
é a adequação da música à liturgia.
Quanto ao conceito do que essas pessoas entrevistadas consideram
como “contemporâneo” dentro da música sacra cristã, foram listadas as seguintes
características: música nova, atual, apreciada pelos jovens; o ritmo tem características da
música autóctone local, no caso, da música
brasileira, e o clima que transmite é de alegria. As três palavras em negrito
destacam aspectos a serem considerados durante a pesquisa para a conceituação
do que vem a ser música contemporânea: há que se observar as características
musicais daquilo que é cantado no contexto sócio-cultural onde a ação se passa,
notoriamente da música secular, pois é onde o conceito de atualidade se baseia;
será necessário averiguar ainda se essas características carregam algum traço
da música nativa ou se reproduzem tendências de âmbito popular maior, além das
fronteiras nacionais.
Quanto à característica da “alegria”, parece estar
conectada com o perfil da faixa etária que mais solicita esse tipo de música, que
são os jovens. Será obrigatório o estudo dos distintivos musicais principais
das diversas fases da história da música para que se defina com clareza se tal
peça musical detém ou não essas características que a fazem contemporânea. No
caso da pesquisa ora em análise, as pessoas disseram que uma das marcas da
contemporaneidade está presente no tipo de instrumentos que acompanham o canto:
são os eletrônicos, a percussão e o violão.
A colocação de que os textos da
música sacra contemporânea são mais superficiais do que os da música
tradicional precisa ser avaliada no presente contexto das comunidades
analisadas, pois no romantismo do final do século XIX e início do XX, de onde
procede a maioria da hinodia tradicional que está nos hinários atuais, os
versos medidos e rimados eram o veículo normal da linguagem, não diferindo
tanto da prosa. Por que razão os textos atuais são mais superficiais? Seria
pela falta de uma linguagem poética ou porque seu conteúdo teológico é fraco? O
conteúdo desse texto também há de refletir as tendências teológicas adotadas
pelo grupo como sendo as do momento.
Em relação ao item “escolha dos cantos”, convém destacar dois
pontos que haviam escapado à percepção anterior da autora sobre o assunto: a
influência dos líderes sobre seu grupo e o senso de que deve existir uma
espécie de “democratização” na escolha dos cantos para o culto.
Ficou abertamente patenteado que os líderes podem influir
bastante para que uma comunidade venha a optar pela tradição ou pela
contemporaneidade nos seus cantos. No caso da pesquisa empreendida, percebeu-se
que os líderes batistas estão em um processo de mudança da música tradicional
para a contemporânea, mas ainda não sabem bem que critérios devem ser tomados
para essa opção. Por um lado, porque anteriormente essa era a prática local ou
porque ainda existem muitos membros adeptos dessa tendência, decidem que alguns
hinos tradicionais do hinário devem ser mantidos no culto.
Por outro lado, para
agradar à juventude e por influências dos carismáticos, incluem em seus cultos
cantos dessa procedência, de vários cancioneiros, cuja letra nem sempre se
coaduna com o tema do sermão ou do ano eclesiástico. Quanto à liderança da
comunidade luterana, constatou-se o cuidado do líder principal em selecionar
cantos temáticos , independente se tradicionais ou não, embora se tenha
percebido os contemporâneos serem minoritários ali. Que conseqüências podem
advir para uma comunidade cuja liderança julga importante “agradar” à juventude
e incluir, sem critérios firmes, cantos “modernosos”, mas fracos em seus
conteúdo teológico-confessional? Como lidar com o fato de que há de haver
contextualização litúrgica, mas sem empobrecimento das verdades da fé
confessional?
O que se denominou “democratização” na escolha dos cantos vem a
ser a sugestão dada por alguns dos/as entrevistados/as para que haja a
participação do povo nessa tarefa. Essa participação foi sugerida para uso nas
comunidades locais, porém ficou o alerta para que, mesmo em empreendimentos de
caráter mais geral, como a confecção de um hinário, os líderes não se esqueçam
de consultar o povo.
O último ponto abordado, que enfoca os hinários das comunidades
em estudo, teve tripla finalidade: a) entender melhor a opinião das pessoas
entrevistadas; b) verificar nesses hinários a tensão entre tradição e
contemporaneidade; c) aferir que contribuições as pessoas entrevistadas
deixaram para a redação do último capítulo da tese.
O HCC espelha a visão dos batistas da CBB do fim dos anos 80 e
início da década de 90. O HPD reflete os luteranos e luteranas do final dos
anos 70 e começo dos 80. Em relação aos batistas, sabe-se que têm necessitado
usar outras fontes para os cantos de seus cultos. Isso pode revelar lacunas
existentes na hinodia do HCC, como linguagem descontextualizada e estilo musical
defasado, mas também pode caracterizar uma tendência já do final dos anos 90 de
as igrejas batistas adotarem os procedimentos que carismáticos vêm usando desde
o final dos anos 60. Os luteranos da comunidade em estudo continuam usando o
HPD, mesmo vendo nele um veículo desatualizado. Em seus cultos, fala mais forte
a tradição luterana. Toda e qualquer inclusão de cantos de outras fontes passa
pelo crivo teológico do pastor, mesmo que essa inclusão seja em número quase
inexpressivo.
Nessa pesquisa , notou-se que os hinários são importantes para
as pessoas. Elas gostam dos hinários de sua denominação, mesmo apontando falhas
e lacunas a serem preenchidas no futuro. Elas ainda têm consciência de que,
mesmo incompletos e/ou ultrapassados, esses hinários falam por elas,
expressando verdades religiosas através de uma linguagem poética e musical.
As
considerações que levantaram acerca dos hinários serão importantes para o
último capítulo. São elas: os hinários devem veicular as verdades doutrinárias
do grupo (ressalva de um luterano: sempre com bom conteúdo evangélico);
precisam ter uma boa organização estrutural, de sorte que os hinos fiquem
fáceis de serem achados através de seus índices; precisam conter vasto e
diversificado conteúdo cristão, com estilos musicais variados, a fim de atender
à grande diversidade das comunidades em âmbito nacional; podem apresentar
apêndices com orações, credos e sugestões que ajudem a liturgia.
Os hinários dão uma visão não só da identidade da denominação
que representam como também ajudam a esclarecer quais as preocupações de ordem
teológica, confessional, doutrinária, litúrgica e social do grupo através da
história. Eles ainda expressam o modo de pensar daquele grupo no momento de sua
concepção, estampado no tipo de hinodia selecionada. Cabe aos comitês de
organização serem porta-vozes dos anseios e valores daqueles que ali congregam,
tarefa reconhecidamente árdua e problemática, por motivos que vão da exigüidade
de tempo até os mais esdrúxulos.
A autora, com os dados colhidos nessa pesquisa, deseja voltar ao
início dos registros veterotestamentários e seguir pela história da música
sacra cristã, detectando na releitura dessa história, como as pessoas através
dos tempos lidaram com tradição e contemporaneidade e buscando critérios que
possam ajudar a pessoas do tempo atual a manejarem a mesma tensão.
BIBLIOGRAFIA
CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA. 1a. ed. Hinário para o Culto Cristão. Rio de Janeiro: Junta de Educação
Religiosa e Publicações, 1990.
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