Os
corais luteranos na obra de Bach
Uma das práticas
mais incentivadas por Martinho Lutero (1483-1546) na Reforma Protestante foi a
criação (ou tradução e adaptação) de melodias corais para os cultos luteranos.
Lutero era músico e fã de Josquin Desprez, e ele mesmo criou alguns corais que
são cantados até hoje nos cultos mundo afora.
Mas quando a melodia precisa ser acompanhada por um instrumento,
como o órgão, ou cantada por um coro a quatro vozes, só a melodia não é
suficiente: é necessário adicionar um acompanhamento (acordes) à melodia, num
processo conhecido como “harmonização de coral”. Isto ficava a cargo dos
músicos executantes ou do kapellmeister do local, e era algo comum e trivial
na Alemanha da era barroca. Dentre os compositores que se destacaram nesse
ofício está o nosso velho conhecido Johann Sebastian Bach: veja o que ele fez,
por exemplo, com a bela melodia An Wasserflüssen Babylon do organista Wolfgang Dachstein
(1487-1553) – ouça primeiro a melodia coral, depois a harmonização de Bach, BWV
267 (apenas as frases iniciais de ambas):
No catálogo de obras de Bach (Bach-Werke-Verzeichnis em alemão, também conhecido por BWV),
as obras numeradas de 250 a 438 são todas corais harmonizados a 4 vozes. A esse
montante acrescente mais os corais presentes em cantatas, oratórios e paixões,
e você terá uma imensa coleção de harmonizações diferentes, às vezes até para a
mesma melodia coral. Ouça a frase inicial de Ach Gott, vom Himmel sieh’
darein, melodia de Martinho Lutero, e depois repare como são
diferentes as harmonizações dos corais que encerram as cantatas Ach
Gott, vom Himmel sieh darein BWV
2 e Du sollt Gott, deinen Herren, liebenBWV
77 de Bach:
Vale a pena observar que, entre a época de criação das melodias
corais (século XVI) e a época de Bach (século XVIII) muita coisa mudou na
harmonia e teoria musical, o que gerou alguns conflitos interessantes. Por
exemplo, para corais de arrependimento e penitência Lutero preferia o modo
frígio, mas durante o barroco a música modal já havia cedido espaço para a
música tonal (maior e menor). E aí vemos Bach dando tratos à imaginação para
harmonizar o exemplo anterior, Ach Gott, vom Himmel sieh’
darein, que é em modo frígio assim como Aus
tiefer Not schrei ich zu dir, harmonizado na cantata de mesmo nome
BWV 38:
Na época de Lutero não havia a “exigência” de que a música
começasse e terminasse no mesmo tom (aliás, ainda nem existia o “conceito” de
tonalidade). É por isso que Christ lag in Todes Banden de Lutero inicia claramente em Si
menor e termina em Mi menor, mas isso é algo com que Bach jamais poderia
concordar. Assim, na sua cantata Christ lag in Todes Banden BWV 4, ele dá uma forçadinha e inicia
o coral em Mi menor mesmo:
Porém o “Prêmio Schoenberg de Modernosidade” vai mesmo para
Johann Rudolf Ahle (1625-1673), que ousou iniciar seu coral Es
ist genug com uma
escala de tons inteiros. Só Bach mesmo para tirar isto de letra, lá no final da
cantata O Ewigkeit, du Donnerwort IIBWV
60:
Vencido o problema da harmonização, em muitos casos Bach também
escrevia um acompanhamento mais elaborado para emoldurar todo o coral. O
exemplo mais famoso desse procedimento é a melodia conhecida por “Jesus Alegria
dos Homens”, que enriquece a melodia coral Werde munter, mein Gemüte de Johann Schop (1590-1667) no final
da cantata Herz und Mund und Tat und Leben BWV 147. O mesmo coral também foi
utilizado no final da cantata Ich armer Mensch, ich
Sündenknecht BWV 55 e
no meio da Paixão segundo São Mateus BWV 244 (o nº 40, Bin
ich gleich von dir gewichen) com diferentes harmonizações:
Mas Bach não se restringia apenas às harmonizações: as melodias
corais também eram usadas como base para criação de obras musicais mais
complexas, como fantasias, variações, partitas, motetos e cantatas. Veja o caso
do coral natalino de Lutero, Vom Himmel hoch, da komm’ ich
her: Bach o tomou emprestado em três números do Oratório de Natal
BWV 248 (ouça aqui o início do nº9), mas a melodia também originou vários
prelúdios para órgão, como o Prelúdio em Dó Maior BWV 700, além das Variações
Canônicas BWV 769:
Uma melodia coral também podia originar vários movimentos de uma cantata. A cantataEin feste Burg ist unser Gott BWV 80 tem quatro dos seus oito movimentos baseados no famoso coral de Lutero: além da harmonização tradicional ao final da cantata, ele emoldurou o coral com um acompanhamento também baseado na melodia (nº5) e criou um adorável dueto onde a soprano entoa uma versão floreada do hino. Mas o gênio de Bach aparece mesmo no movimento inicial, uma grande fantasia coral sobre a famosa melodia:
Para finalizar, a pérola das pérolas: o coro
inicial da Paixão segundo São Mateus BWV 244, Kommt,
ihr Töchter, escrito para dois coros e duas orquestras. Não, ele
não é baseado em nenhuma melodia coral, porém no decorrer do movimento surge um
terceiro coro cantando O Lamm Gottes, unschuldig de Nikolaus Decius (1485-1541). Ouça
primeiro somente a melodia coral completa, acompanhada da harmonização de Bach
BWV 401:
As sete frases da
melodia coral estão espalhadas no meio do coro; aqui está uma montagem só com
elas.
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